NR-1 e a Saúde Mental nas Organizações: Da obrigação legal à oportunidade de transformação institucional
Por Profª. Dra. Adriellen Ramos – Psicanalista e Vice-presidente da ABRAPN
Em maio de 2025, entrou em vigor a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), exigindo que todas as empresas, públicas ou privadas, passem a identificar, avaliar e gerenciar os riscos psicossociais em seus ambientes de trabalho. Com um prazo educativo até 2026, a norma tem sido pouco compreendida, e em muitos casos, negligenciada.
Mas a NR-1 não é apenas mais uma exigência burocrática. Ela representa um marco histórico: o reconhecimento legal do sofrimento psíquico como uma questão de saúde e segurança no trabalho.
O sofrimento no trabalho não é invisível, só não está nos relatórios
Hoje, o Brasil ocupa o segundo lugar no mundo em transtornos de ansiedade e está entre os cinco países com maior prevalência de depressão relacionada ao trabalho (OMS, 2023). Segundo dados do INSS, os transtornos mentais e comportamentais já são a terceira maior causa de afastamentos por incapacidade no país.
Apesar disso, muitas empresas ainda tratam a saúde mental como um tema secundário, ou acreditam que questionários de clima, rodas de conversa e eventos esporádicos de “qualidade de vida” são suficientes. Não são.
O sofrimento psíquico é multifatorial, silencioso e muitas vezes mascarado em conflitos constantes, alta rotatividade, pedidos de demissão sem explicação, queixas físicas recorrentes e colapsos de liderança.
O que são riscos psicossociais?
De acordo com a OIT (2022), são fatores relacionados às condições, organização e relações de trabalho que afetam negativamente a saúde emocional dos trabalhadores. Entre os principais exemplos, estão:
Assédio moral ou sexual (explícito ou velado);
Metas abusivas e ambientes de alta pressão;
Lideranças autoritárias ou emocionalmente negligentes;
Falta de reconhecimento simbólico e segurança emocional;
Isolamento, sobrecarga, ambiguidade de função;
Silenciamento institucional de conflitos e queixas.
Esses riscos não afetam apenas o indivíduo. Eles adoecem equipes inteiras, fragilizam o clima organizacional e reduzem drasticamente a produtividade.
O erro de delegar ao RH o que exige escuta especializada
É comum que a aplicação da NR-1 seja equivocadamente atribuída a setores como RH ou Segurança do Trabalho. Embora essenciais, esses profissionais não possuem formação clínica, simbólica ou técnica para analisar o nexo entre sofrimento psíquico e estrutura organizacional.
O que a NR-1 exige vai muito além da observação de sintomas. Ela demanda:
Leitura de nexo causal entre o ambiente de trabalho e o adoecimento;
Emissão de pareceres institucionais baseados em escuta qualificada;
Planejamento de ações preventivas e éticas que alcancem a raiz do problema.
Essa atuação só pode ser feita por profissionais especializados, psicanalistas, psicólogos, psiquiatras ou terapeutas com formação voltada ao campo organizacional.
Avaliar sofrimento não é aplicar questionários
A ideia de que sofrimento pode ser “medido” por gráficos e pesquisas comportamentais é um mito. O sofrimento real não está apenas no que é dito, mas no que se repete, no que se silencia, no que se desloca.
A escuta psicanalítica institucional permite acessar essas camadas profundas, considerando o sujeito em sua inserção simbólica, relacional e histórica dentro da cultura organizacional. Ela identifica o que os relatórios não mostram: vínculos adoecidos, repetições sintomáticas, lideranças descompensadas e defesas institucionais.
Formação especializada: a chave para a aplicação responsável da NR-1
A NR-1 não nomeia uma profissão específica para aplicar seus critérios, mas exige que quem o faça tenha capacidade técnica de entender dinâmicas inconscientes, vínculos simbólicos e sofrimento institucional.
Por isso, profissionais da saúde mental que desejam atuar nesse campo precisam estar capacitados. Seja qual for sua área de base, é indispensável:
Conhecer a lógica dos sintomas organizacionais;
Saber identificar o nexo causal entre estrutura e sofrimento;
Emitir pareceres com respaldo teórico e metodológico.
Sem essa formação, há o risco de tratar sintomas superficiais enquanto o adoecimento estrutural segue operando nos bastidores. E isso custa caro, juridicamente, financeiramente e simbolicamente.
Sobre a autora
Profª. Dra. Adriellen Ramos é psicanalista, doutora em Neuropsicanálise e mestre em Psicanálise, com ampla formação e atuação voltadas à compreensão profunda do sujeito, do sofrimento humano e das dinâmicas inconscientes que atravessam famílias, instituições e organizações.
Especialista em Psicanálise Clínica, Psicanálise Organizacional e Psicoembriologia, Adriellen construiu uma trajetória marcada pelo rigor teórico, pela escuta ética e pela produção de conhecimento aplicado às realidades sociais e institucionais. Seus estudos têm como base as obras de Freud, Lacan, Winnicott e autores contemporâneos, integrando contribuições da clínica, da cultura e das políticas públicas.
É autora de pesquisas reconhecidas nacionalmente sobre luto perinatal e sofrimento psíquico nas relações primárias, e atua com escuta institucional no campo dos riscos psicossociais, da saúde mental no trabalho e da aplicação clínica da NR-1.
Atualmente é vice-presidente da ABRAPN (Associação Brasileira de Psicanalistas e Neuropsicanalistas), onde coordena comissões técnicas e projetos de impacto social. Também é idealizadora do MBA em Psicanálise Empresarial e Gestão Estratégica da NR-1, pioneiro na capacitação de profissionais para atuação em empresas com base na escuta psicanalítica e análise simbólica das estruturas organizacionais.
Sua missão é levar a Psicanálise para além do divã, tornando-a ferramenta potente de transformação humana, relacional e institucional, com ética, profundidade e responsabilidade social.